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Onerosidade excessiva e revisão contratual em tempos de pandemia: Revis(it)ando conceitos

*Mayara Roth Isfer Osna e Muriel Waksman

Introdução

Com a (não mais tão) nova epidemia de coronavírus pelo mundo e pelo Brasil, naturalmente, todos estão sentindo os efeitos econômicos, socioculturais e, logicamente, isolacionistas da pandemia. A queda ou inexistência de caixa tanto para pequenas quanto grandes empresas está refletindo diretamente nas relações contratuais (cujo nascimento se deu no período de normalidade), as quais, infelizmente, encontram-se em muitos casos às vésperas de inadimplemento ou rescisão contratual.


Muitos contratantes acabam não conseguindo adimplir com suas obrigações por não possuírem capacidade de prestar serviços à base de home office, não poderem expor seus trabalhadores in loco e, até mesmo, terem tido suas atividades suspensas temporariamente por conta da quarentena decretada em diversos Estados.


E é nesse contexto que o direito civil e o contratual ganham ainda maior espaço, permitindo reflexões acerca do inadimplemento contratual e das possibilidades de remediá-lo em vista da situação específica pandêmica. Seria possível rever os termos contratados, tendo-se em vista o cenário em que nos encontramos? A pandemia de COVID-19 pode ser considerada circunstância atenuante aos efeitos do inadimplemento? Caberia às partes contratantes ou ao judiciário realizar alterações ao contrato?


Neste artigo, pretendemos pincelar os principais pontos relacionados à Teoria Geral dos Contratos no que se refere ao inadimplemento em situações extraordinárias, imprevisíveis e onerosas a ambas as partes contratantes. Nesse sentido, é preciso observar que as soluções a serem encontradas pelo legislador; o recurso a elas pelos operadores do direito; e a interpretação de novas normas pelo julgador (a par das antigas que não tenham sido afetadas) devem estar fundadas precisamente na referida Teoria Geral do Contrato, sob a pena de desvirtuamento de um sistema construído ao longo de séculos, o que se daria por meio de institutos disruptivos, os quais implicariam, como resultado, em elevadíssimos custos de transação, em externalidades negativas, em efeitos de segunda ordem, como decorrência da insegurança do direito correspondente, comprometida fortemente pelo componente de um pesadíssimo grau de incerteza.


Legislação aplicável ao conceito de onerosidade excessiva

Primeiramente, é importante analisarmos o que articula a Lei antes de pensarmos em casos práticos. Determina o Código Civil que o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou de força maior (fato necessário, cujos efeitos não são passíveis de serem evitados ou impedidos), se expressamente não se houver por eles responsabilizado[1]. Desta forma, os devedores que não assumirem expressamente o resultado prejudicial de um evento de caso fortuito ou de força maior (no contrato) não serão por tanto responsabilizados, nos termos da lei.


Continua a legislação civil a determinar que, quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação[2]. Abre-se, então, a possibilidade de revisão de prestações devidas, quando claramente desproporcionais em vista de acontecimentos aperiódicos.


Ainda neste sentido, merece atenção outro dispositivo do Código Civil, o qual determina que, nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução contratual[3]. Nota-se que a resolução do contrato aqui prevista se refere ao pedido judicial feito pela parte prejudicada; todavia, determina o artigo subsequente da lei que referida resolução contratual (via Judiciário) pode ser evitada, desde que o réu se predisponha a modificar as condições contratadas equitativamente.


Neste conjunto de dispositivos, o legislador utiliza-se dos institutos (i) do caso fortuito e da força maior, (ii) da teoria da imprevisão, e (iii) da onerosidade excessiva, como requisitos para a resolução contratual ou alteração de suas cláusulas quando as prestações tornarem-se manifestamente desproporcionais, tanto judicialmente determinada quanto de mútuo e comum acordo entre as partes contratantes.


Vale, portanto, tratar de referidos institutos separadamente, de forma a melhor se compreender o plano de ação a ser tomado em vista da atual pandemia.


Caso fortuito ou força maior, teoria da imprevisão e onerosidade excessiva

As obrigações contratadas por duas partes decorrem tanto da legislação quanto dos acontecimentos cotidianos e da vontade humana. Isto quer dizer que o princípio da pacta sunt servanda nos contratos privados pode encontrar alguns percalços ao longo do cumprimento contratual, sendo que, muitas vezes, o total adimplemento pode não ser completamente possível.


É justamente o que ocorre quando caracterizado caso fortuito ou força maior: “(…) devem partir de fatos estranhos à vontade do devedor ou do interessado. Se há culpa de alguém pelo evento, não ocorre o seccionamento ou rompimento do nexo causal. Desse modo, desaparecido o nexo causal, não há responsabilidade. (…) Centra-se no fato de que o prejuízo não é causado pelo fato do agente, mas em razão de acontecimentos que escapam a seu poder[4].


Caso fortuito ou força maior, portanto, são acontecimentos que obstam a prestação contratual – por exemplo, se determinado imóvel objeto de compra e venda não pode ser repassado ao comprador, em virtude de destruição por incêndio. Todos os prejuízos serão imputados à força maior ou ao caso fortuito, os quais, provados, podem isentar o devedor de adimplir com sua obrigação.


Ambos os institutos ensejam elementos objetivo (inevitabilidade do acontecimento) e subjetivo (ausência de culpa das partes pelo prejuízo contratual consequencial)[5]. Claramente (como está de acordo o Judiciário brasileiro, conforme veremos adiante), a atual pandemia de coronavírus pode ser considerada caso fortuito ou força maior, desde que seus efeitos gerem, no caso concreto, resultado que não poderia ser evitado pelas partes contratantes.


Nesse sentido, se, apesar do estado pandêmico, a parte puder seguir adimplindo sua obrigação sem qualquer efeito adverso, não há que se falar na excussão da responsabilidade pelo descumprimento contratual.


Cabe lembrar, ainda, que nos casos de contratos que tenham sido expressos quanto à assunção da responsabilidade por uma das partes por referidos eventos extraordinários, esta – a princípio – não poderá se desviar de sua responsabilidade, conforme o já explicitado artigo 393 do Código Civil.


No intuito de estudar os fatos inevitáveis e extraordinários que possuem como consequência o inadimplemento contratual, é necessário ter em mente outro instituto que possui relação direta com a revisão contratual: a teoria da imprevisão. Pelo nome, declaradamente, a teoria da imprevisão é diretamente relacionada ao assunto em pauta, em vista da impossibilidade de se antecipar a ocorrência dos eventos extraordinários (i.e., caso fortuito ou força maior), assim como a consequência que estes trarão às relações contratuais e à economia como um todo.


A teoria da imprevisão surge com a evolução da cláusula rebus sic stantibus[6], a qual significa “estando assim as coisas”, tratando-se, assim, de presunção de que as partes contratantes estão obrigadas a dar cumprimento às respectivas obrigações contratuais, desde que as circunstâncias do momento da contratação sejam mantidas ao longo do negócio jurídico[7]. A mera alteração do estado das coisas quando da celebração do negócio jurídico enseja, portanto, infração à referida cláusula, abrindo-se a discussão da impossibilidade de adimplemento do contratado.


Em suma, e de forma a não nos alongarmos excessivamente, a teoria da imprevisão pode e deve ser aplicada ao caso da pandemia do COVID-19, pois envolve fatos imprevisíveis e extraordinários (i.e., caso fortuito ou força maior), os quais fazem com que partes contratantes não consigam dar cumprimento ao inicialmente acordado. Assim, pode o juiz realizar a revisão de um contrato ou, até mesmo, declará-lo rescindido, desde que acontecimentos imprevisíveis tenham alterado as circunstâncias originalmente contratadas, acarretando “uma onerosidade excessiva da prestação” para o obrigado (ou seja, desequilíbrio contratual – conforme previsto na legislação civil vigente).[8]


No ambiente nacional, as consequências da cláusula rebus sic standibus foram abarcadas por meio de alguns dispositivos legais. Para o que importa ao presente trabalho, cita-se, em especial, os artigos 317, 478, 479 e 480 do Código Civil[9].

O primeiro deles apresenta como requisitos para a aplicação da teoria da imprevisão: (i) a existência de um contrato oneroso, de execução diferida/continuada, excluídos os contratos aleatórios[10]; (ii) alterações fáticas das circunstancias contratadas, decorrentes de evento extraordinário e imprevisível (caso fortuito ou força maior); (iii) a desproporcionalidade das prestações devidas contratualmente em decorrência de referidas alterações (a onerosidade excessiva); e (iv) o nexo de causalidade entre os fatos imprevisíveis e o prejuízo acarretado pela onerosidade excessiva.


Confirmada a aplicação da teoria da imprevisão e da classificação de caso fortuito ou força maior à atual pandemia, passa-se a verificar o significado da onerosidade excessiva nos contratos, abarcado pelos já mencionados artigos 478, 479 e 480 do Código Civil, assim como sua interpretação em vista do coronavírus.


A onerosidade excessiva é demonstrada por meio de comprovação de vantagem em excesso de um dos contratantes em detrimento dos prejuízos sofridos pela outra parte, em decorrência de eventos imprevisíveis e extraordinários. Logicamente, sua verificação é mandatória no dia-a-dia para que se possibilite a revisão de um contrato celebrado entre duas partes, tendo-se em vista que o próprio contrato deve abarcar eventuais inadimplementos e faltas menores.


Todavia, em vista da atual situação do país, em que a economia vai de mal a pior (crises políticas à parte), pequenos e até grandes empresários sofrem as consequências da crise. Os efeitos pessoais financeiros e de, até mesmo, sobrevivência de negócios, são mais do que extensos. Será que, neste caso, a comprovação da vantagem da outra parte para aplicabilidade do dispositivo legal e, portanto, da revisão contratual, é necessária?


No início da pandemia, restou-se claro que estávamos perante situação de caso fortuito ou de força maior, e que eventuais prejuízos poderiam ocorrer em vista da imprevisibilidade da situação como um todo – afinal, ninguém previu a existência do vírus em si, sua rápida proliferação, o prazo de duração da quarentena decretada nos Estados, a situação do sistema de saúde catastrófica e a paralisação de diversos setores da economia.


Contudo, hoje, após quase dois meses da decretação da calamidade pública no país, ficou clara a onerosidade excessiva sofrida por basicamente todos diante do coronavírus, afetando a maior parte das obrigações contratuais.

Nesse sentido, com a fragilização nacional perante a crise, em quase que a totalidade dos casos não seria possível que todos os requisitos para a aplicação do artigo 478 do Código Civil fossem preenchidos.


Recorde-se que citado dispositivo exige que a prestação de uma das partes se torne excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra. Ora, no panorama recente, o primeiro pressuposto é alcançado por praticamente todos os empresários, enquanto o segundo não foi atingido por quase nenhum.


E é a partir desse arcabouço normativo que o judiciário vem analisando os inúmeros pedidos de rescisão e revisão contratual e de afastamento da mora, muitas vezes utilizando não um, mas todos os conceitos acima analisados para interpretar as relações jurídicas em debate.


O Poder Judiciário em tempos de crise do coronavírus

Conforme acima visto, em tempos de crise causada pela pandemia da Covid-19, a enxurrada de casos levados ao Poder Judiciário é naturalmente inevitável. Diversas relações contratuais estão sendo problematizadas pelos mais diversos motivos. Pode-se dizer, no entanto, que a maioria absoluta envolve hipóteses de suposta impossibilidade de adimplemento por um ou pelos dois – ou mais – polos da relação.


Nessa toada, um dos argumentos frequentemente levado aos Tribunais é, conforme acima exposto, justamente a onerosidade excessiva. Em várias oportunidades, o instituto estampado no artigo 478 e seguintes da codificação civil pátria é cumulado com o disposto no artigo 317 do mesmo diploma, buscando-se ou a rescisão antecipada do contrato, ou a alteração dos parâmetros originalmente estabelecidos pelas partes.

Na prática, todavia, os pleitos de revisão contratual com base nos citados dispositivos não têm sido, de maneira geral, exitosos.


Em recentíssimo caso, julgado no último dia 05 de maio, o Tribunal de Justiça de São Paulo[11] negou provimento a agravo de instrumento interposto por consumidores que buscavam a reforma de decisão que havia negado tutela de urgência visando à imediata suspensão do cumprimento de contrato de prestação continuada em virtude da decretação de pandemia. Analisando o caso, o Relator, Desembargador Décio Rodrigues, da 21ª Câmara de Direito Privado do TJSP, acompanhou o entendimento de primeira instância, pontuando que “não cabe redução da prestação ou alteração do modo de pagamento com fundamento na Teoria da Onerosidade Excessiva do Código Civil (art. 480 do CC), porquanto a atual retração da atividade econômica ensejada por distanciamento social não teve o condão de impor extrema vantagem para a parte ré (art. e 478 do CC), que continua sendo credora de parcela de valor igual àquele vigente antes da crise sanitária”. Afirmou, ainda, não ser aplicável o disposto no artigo 317 do Código Civil, vez que “não sobreveio desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução”.


Vê-se, assim, que a ocorrência de acontecimentos imprevisíveis ou extraordinários sequer foi questionada pelo Tribunal. O que impediu a concessão da tutela foi a ausência de comprovação da vantagem excessiva para uma das partes, ou da desproporção da prestação por conta da passagem do tempo.


Em outro caso, igualmente julgado pela Corte paulista[12], entendeu-se não ser possível a suspensão da exigibilidade de alugueis em virtude da crise decorrente da pandemia. Na hipótese, o relator Arantes Theodoro entendeu que “nos casos de força maior ou caso fortuito o direito positivo autoriza a parte a resolver o contrato (artigo 478 do Código Civil) ou postular a readequação do ‘valor real da prestação’ (artigo 317), mas não a simplesmente suspender o cumprimento da obrigação”. Não se apreciou, contudo, se os requisitos dos citados dispositivos haviam sido ou não satisfeitos, já que o agravante não pleiteou a resolução contratual ou a redução da prestação.


Em hipótese similar, tratando de contrato locatício, a juíza Flavia Poyares Miranda, da 28ª Vara Cível de São Paulo, concedeu a tutela de urgência pleiteada[13] para que, enquanto perdurassem os efeitos da pandemia, com o mínimo de quatro meses após o retorno da quarentena, fossem suspensos os efeitos das cláusulas contratuais relativas ao inadimplemento, “impedindo a declaração de mora pelo Réu e que este, por conseguinte, intente a cobrança do débito e/ou a resolução do Contrato e retomada de imóvel”. Nos fundamentos da decisão, no entanto, não foi possível encontrar referência ao preenchimento dos requisitos do artigo 478 e seguinte do Código Civil. Vale pontuar, todavia, que a Magistrada registrou a necessidade de a Autora manter os empregos de seus funcionários, notadamente porque foi esta a principal alegação da Parte – impossibilidade de arcar tanto com a folha de pagamento, quanto com as despesas locatícias.


O juiz Julio Roberto dos Reis, da 25ª Vara Cível de Brasília, deferiu parcialmente tutela cautelar antecedente[14], determinando a suspensão das cláusulas de contrato de locação de loja em shopping center atinentes ao aluguel mínimo e ao fundo de promoção e propaganda. As demais disposições contratuais foram mantidas em pleno vigor. Segundo o julgador, que aplicou a regra estampada no artigo 317 do Código Civil, o próprio contrato – que conteria cláusula prevendo que o valor locatício estaria vinculado ao faturamento – resolveria grande parte da questão. O afastamento do aluguel mínimo e do fundo de promoção e propaganda, assim, seria suficiente – em análise preliminar – para “manter o contrato e a cooperação/solidariedade entre as partes”.


No Paraná, o juiz da 25ª Vara Cível de Curitiba, Marcelo Mazzali, vem aplicando critérios equitativos para resolver a maior parte das situações envolvendo o instituto da onerosidade excessiva e da imprevisão[15]. Em ao menos três casos desde o início da pandemia o Julgador entendeu que cada parte do contrato deveria arcar com 50% dos impactos decorrentes da crise, havendo suspensão dos pagamentos das parcelas respectivas. Nessa esteira, aplicando-se o artigo 479, do Código Civil, em conjunto com os artigos 421 e 421-A[16], do mesmo Diploma, a escolha foi pela redução equitativa das prestações. Segundo o Magistrado:


Evidentemente que a parte autora está vivenciando momento de recessão que compromete seu equilíbrio econômico-financeiro, causando dificuldade em honrar suas obrigações contratuais. Mas, certo é que mesma situação excepcional também atinge a parte adversa, que ao deixar de receber a contraprestação tem seu equilíbrio econômico-financeiro igualmente afetado. Em suma, a pandemia e seus reflexos atinge a todos os ramos da sociedade.

De modo que além da aplicação da teoria da imprevisão para a resolução dos contratos, ela igualmente permite a sua modificação equitativa para que, afastando-se o desequilíbrio, esses permaneçam vigentes agora em consonância com essa nova situação fática, econômica e social decorrente da pandemia (CC, art.s 421, 421-A e 479).


A solução foi adotada tanto em casos de locação, quanto de cobranças de mensalidade e de contratação de empréstimo mediante emissão de Cédula de Crédito Bancário. Em todas as hipóteses – apreciadas em tutela de urgência – houve apenas “ajuste excepcional com o adiamento de pagamento do valor devido”, “sem alterações dos valores e incidências de encargos e multas contratuais”.


Tratando-se de tutela de urgência, em que não há que se falar em cognição exauriente, é natural que não tenha sido possível analisar, de forma detalhada, em que medida cada uma das partes foi afetada pela crise, possibilitando uma revisão mais abalizada. No entanto, as decisões pareceram coerentes ao tentar encontrar uma saída consensual, que não prejudicasse em demasia nenhum dos contratantes.

Vale pontuar, todavia, que a interpretação dada ao artigo 479 foi inequivocamente elastecida, vez que o réu jamais se ofereceu “a modificar eqüitativamente as condições do contrato”.


Breves conclusões

Conforme visto nos tópicos precedentes, e igualmente pontuado em algumas das decisões colacionadas, a aplicação isolada do artigo 478 da codificação civil em relações contratuais de trato diferido/continuado, em que a parte não objetiva simplesmente a rescisão contratual, é de pouca serventia.


Isso, seja porque há extrema dificuldade na demonstração de que uma das partes obteve vantagem excessiva – caso raro em tempos de crise que assola o país inteiro –, seja pela pouca utilidade da resolução do contrato em si.


O simples afastamento da mora, utilizando os conceitos de caso fortuito ou de força maior previstos no artigo 393, tampouco resolve grande parte dos conflitos, já que carrega a miopia de não se enxergar a economia de forma integral. Afasta-se a responsabilidade de um dos contratantes, imputando os efeitos da crise a outro inocente.


A economia moderna se realiza por meio de cadeias verticais e horizontais de produção e de distribuição, a par de uma realidade (cada vez mais presente) da operação em redes tecidas pela conjugação de diversos círculos concêntricos. Assim sendo, quando é afetada negativamente uma ponta da cadeia vertical ou horizontal, ou um dos subnúcleos da rede, toda a cadeia é, consequentemente, atingida. Isto leva a reconhecer que um empresário, em um determinado momento, pode se encontrar em situação de favorecimento por onerosidade; mas, no momento seguinte, ele é a parte prejudicada. Quanto a esses aspectos, o Direito ainda não tem uma resposta definitiva, porque ele atua em conta-gotas, enquanto a crise age como uma cachoeira, levando tudo correnteza abaixo.


Nessa linha, talvez uma tentativa de solução ao problema proposto seja mesmo a interpretação cumulada dos artigos 317, 478 e 479 do Código Civil no que se refere à revisão contratual. E, como fez o juiz da 25ª Vara Cível, a apreciação conjunta das regras e dos princípios constantes dos artigos 421 e 421-A do mesmo diploma.


Embasado na hermenêutica de tais normas, quando, em vista de caso fortuito ou força maior, a prestação contratual de uma das partes tornar-se onerosamente excessiva, o juiz ou as próprias partes podem resolver o contrato ou (melhor ainda) modificar equitativamente as suas condições.


Aqui, o essencial é conservar os negócios jurídicos de forma que ambas as partes consigam se ater às respectivas obrigações, sem que seja extremamente oneroso a uma ou à outra. Quando uma obrigação se tornar muito onerosa em decorrência dos efeitos da pandemia, claro, sua comprovação é indelével. Infelizmente, assim como vemos muitos negócios passando por necessidades, também há casos de oportunismos. Por tal razão, a evidência da onerosidade excessiva é mandatória, pois, a depender da prestação, pode ser que não haja qualquer consequência negativa trazida pela pandemia.


Cabe às próprias partes ou ao julgador – quando estas não chegarem à solução amigável – refletirem os reais efeitos causados a cada qual naquele contrato específico, e procurarem definir de que modo as prestações melhor se ajustam ao novo cenário.


O intuito, pois, é proteger o empresariado que esteja, de fato, sofrendo em decorrência da pandemia da COVID-19, de forma a possibilitar revisão de termos contratuais que não mais podem ser cumpridos (ou integralmente cumpridos) em vista da redução ou inexistência de caixa. Caso uma prestação contratual torne-se comprovadamente excessiva em vista da imprevisibilidade dos efeitos do vírus, a solução deve ser, sim, a revisão equitativa das prestações.


[1] Artigo 393 do Código Civil.

[2] Artigo 317 do Código Civil.

[3] Artigo 478 do Código Civil.

[4] VENOSA, Sílvio de Salvo Venosa. Direito Civil: Responsabilidade Civil. 13ª Ed., São Paulo: Atlas, 2013. P. 58.

[5] Aqui, na prática, ambos os institutos ensejam idêntica força liberatória, exonerando o devedor de qualquer responsabilidade. Todavia, vale ressaltar que existe uma tênue diferença entre ambos os institutos: José Aguiar Dias (1979, v. 2:361) reforça a ideia de que as expressões são sinônimas, e é inútil distingui-las. Na verdade, não são, mas atual como tal no campo da responsabilidade civil. A doutrina, na realidade, não é concorde sobre sua definição e compreensão desses fenômenos, havendo certa divergência. O caso fortuito (act of God, ato de Deus no direito anglo-saxão) decorreria de foras da natureza, tais como o terremoto, a inundação, o incêndio não provocado, enquanto a força maior decorreria de atos humanos inelutáveis, tais como guerras, revoluções, greves e determinação de autoridades (dato do príncipe). A doutrina costuma apresentar as mais equívocas compreensões dos dois fenômenos. Ambas as figuras equivalem-se, na prática, para afastar o nexo causal.” In VENOSA, Sílvio de Salvo Venosa. Direito Civil: Responsabilidade Civil. 13ª Ed., São Paulo: Atlas, 2013. P. 57.

Quanto à COVID-19, não entraremos no mérito, tendo-se em vista a grande polêmica acerca de seu surgimento, cuja discussão deve ser abordada por uma pesquisa científica à parte.

[6] AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria da imprevisão e revisão judicial dos contratos. Revista dos Tribunais, Ano 85, V. 733, 1996. P. 110.

[7] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 10ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. V. 3. p. 98.

[8] NEVES, Geraldo Serrano. Teoria da imprevisão e cláusula rebus sic stantibus. 1ª Ed., 1956. Disponível em: . Acesso em 10 de maio de 2020.

[9] Conforme visto anteriormente, nos termos da redação dos artigos 317, 478, 479 e 480 do Código Civil.

[10] Contemplados a partir do artigo 458 do Código Civil.

[11] TJSP; Agravo de Instrumento nº 2062931-10.2020.8.26.0000; 05 mai. 2020.

[12] TJSP; Agravo de Instrumento nº 2063701-03.2020.8.26.0000; 06 abr. 2020.

[13] TJSP; Autos n.º 1027402-35.2020.8.26.0100; 30 mar. 2020.

[14] TJDF; Autos n.º 0709038-25.2020.8.07.0001; 08 de abr. 2020.

[15] TJPR; 0003590-66.2020.8.16.0194; 23 abr. 2020; TJPR; 0003527-41.2020.8.16.0194; 22 abr. 2020; 0003259-84.2020.8.16.0194; 08 abr. 2020.

[16]Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.

Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: I – as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; II – a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e III – a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.

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